Arlindo Vicente – Candidato contra o fascismo

No centenário do seu nascimento. Arlindo Vicente – Candidato contra o fascismo

 No ano em que se comemoram datas históricas no percurso de luta do povo português contra a ditadura fascista – os 70 anos da Revolta dos Marinheiros e da abertura do Tarrafal, os 75 anos do Avante! -, vale a pena assinalar também o centenário do nascimento de Arlindo Vicente e, através dele, lembrar a candidatura à Presidência da República, em 1958. Fica ainda um registo naturalmente insuficiente da figura ímpar que foi Arlindo Vicente, pintor, advogado defensor de presos políticos e candidato contra o fascismo.

A candidatura à Presidência da República assumida por Arlindo Vicente em 1958 constitui um dos episódios mais marcantes da luta contra a ditadura fascista que amordaçou o povo português durante 48 anos, quer pelas fissuras provocadas no regime durante o período de campanha, quer pela sentido colectivo demonstrado pelo protagonista na hora de se retirar em favor do general Humberto Delgado, promovendo a união de ambas as candidaturas.

Testado no combate antifascista nos famigerados Tribunais Plenários como advogado – tantas vezes sem cobrar um tostão – de muitos presos políticos, Arlindo Vicente inicia o seu percurso de resistência activa próximo do Movimento de Unidade Democrática (MUD), sobretudo por ocasião da sua ilegalização.

Também na candidatura à presidência protagonizada pelo professor Rui Luís Gomes, em 1951, sob o nome do Movimento Social Democrático, promovido pelo PCP e outros antifascistas, Arlindo Vicente toma parte activa. Sob esta candidatura acabou por se abater a brutal repressão da ditadura, com espancamentos, apreensão e proibição de propaganda, prisões indiscriminadas. Porquê? Porque nela se defendia a amnistia para todos os presos políticos, a extinção do Tarrafal, o fim da PIDE e da censura, a extinção dos tribunais plenários, etc.

De 1951 a 1957 assiste-se a um refluxo da oposição (mas não da luta), a qual volta a surgir em força nas «eleições» para a «Assembleia Nacional» em 1957. Arlindo Vicente integra a lista da Oposição Democrática pelo círculo de Lisboa, mas o movimento não se apresenta às urnas, mais uma vez, por carência absoluta de condições e liberdade mínima de acção durante a campanha.

Combate pela liberdade

Sucessor do marechal Carmona no palácio de Belém, Craveiro Lopes é impedido de se voltar a candidatar e o regime coloca em seu lugar um experiente fascista com 14 anos de dedicação no ministério da Marinha, o almirante Américo Tomás, posteriormente apeado do cargo com a revolução dos cravos.

Contra Tomás, a oposição aposta no nome de Cunha Leal, mas numa reviravolta talvez inesperada, o engenheiro alega indisponibilidade e, a 20 de Abril de 1958, em assembleia de delegados ocorrida na Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal, em Lisboa, Arlindo Vicente é indicado como candidato da estrutura unitária.

No seguimento, o PCP emite diversos comunicados apelando à unidade de todos os sectores democráticos em torno da candidatura, a qual se pretende que seja um factor de mobilização e actividade das massas até às urnas. Humberto Delgado apresenta-se cerca de duas semanas depois apoiado pela Oposição Independente.

Arlindo Vicente inicia a campanha no Sul do País. Grandes iniciativas acolhem o candidato em Faro, Beja, mas depois também em Coimbra e no Porto.

A sede de campanha fica em Lisboa, no Arco Cego, local que a PIDE assalta destruindo e roubando materiais de propaganda. A candidatura de Arlindo Vicente e o próprio candidato sofrem constantes ameaças, difamações e, desde logo, centenas de colaboradores são detidos.

A comissão central da candidatura integra dezenas de membros. Na última semana de Maio, a quinze dias da farsa eleitoral, agendada para 8 de Junho, restam em liberdade um punhado deles. Por todo o lado onde passa Arlindo Vicente em sessões de casa invariavelmente cheia, mobiliza-se a polícia política e a GNR em provocação aberta. O fascismo teme o candidato e a força da sua candidatura, provada que está a tenacidade dos comunistas e dos que com eles estão nesta batalha pela liberdade.

O «Pacto de Cacilhas» e a farsa consumada

Em face da repressão que se abate sobre as candidaturas do campo democrático e temendo que a divisão de votos seja pretexto para que o fascismo «legitime» a sua «vitória» eleitoral, promove-se em Cacilhas, a 30 de Maio, uma reunião entre as comissões de campanha. Fica acordada a desistência de Arlindo Vicente em favor do general Humberto Delgado, mas nem assim a ditadura se coíbe de atribuir 23 por cento à candidatura da Oposição. Consuma-se a farsa, fica a denúncia do regime e a mobilização de centenas de milhares de portugueses contra o fascismo. A luta continua.

Prisão não tardou

No rescaldo das eleições fraudulentas fica ainda uma «espinha na garganta» do regime: Arlindo Vicente.

A personalidade combativa e o prestígio granjeado tornam-se cada vez mais incómodos e depois da repressão na campanha chega a prisão, em Setembro de 1961.

È enviado para o Aljube onde permanece 19 dias e noites num compartimento com dois metros por um, os famosos «curros», sujeito a tortura e sem a necessária assistência médica. A condição precária provoca em Arlindo Vicente graves problemas de saúde, pelo que a PIDE transfere o ex-candidato para Caxias mantendo-o durante três meses e meio isolado.

Presente a tribunal, em Fevereiro de 1962, declara-se inocente e defende não ser um elemento «perigoso» como indica a PIDE, antes, insiste que o seu processo é político.

A estas acusações acrescenta a PIDE outras na esperança de manter Arlindo Vicente sob a pata do cárcere fascista. Acusam-no, por exemplo, de ter defendido elementos do MUD, de ter sido candidato a deputado e à Presidência da República, da notícia da sua prisão ter sido veiculada pelo… Avante!.

Em Julho acaba por ser libertado mas com uma pena de 20 meses de prisão correccional e cinco anos de suspensão de direitos políticos. Era redonda a tacanhez da ditadura portuguesa quando suspendia os «direitos políticos» de um homem como pena pelo exercício dos mesmos.

Sonho concretizado em vida – O pintor dentro do «doutor»

As modestas posses da família impediram que Arlindo Vicente optasse pela sua mais pungente paixão: a pintura.

Depois de um aturado esforço para manter o filho na escola, o pai de Arlindo Vicente impediu que o jovem artista fizesse da tela e dos pincéis modo de vida, negação dum sonho que o haveria de acompanhar vida fora.

O talento de Arlindo Vicente amadureceu cedo, ainda na adolescência. No Liceu de Aveiro cursou Desenho com distinção e foi pela mão do reitor da escola que ilustrou o primeiro livro, um manual escolar. Pouco valeu o estímulo, acabou em Medicina, curso que viria a abandonar para concluir Direito em Coimbra, isto depois de matrículas em Lisboa, período durante o qual estabelece os primeiros contactos na capital.

Na Universidade de Coimbra, organiza o 1º Salão de Arte dos Estudantes, em 1927. Arlindo Vicente expõe 16 obras ao lado de José Régio, José Santos Figueira, Alfredo Osório de Souza Pinto, entre outros.

No mesmo ano, os retratos apresentados em Coimbra e o contacto com José Régio levam Arlindo Vicente a colaborar com a Presença, revista que durante 13 anos contou com Arlindo Vicente na primeira fila dos seus promotores, emprestando-lhe ilustrações, duas das quais na capa da publicação.
O grupo que se associa à revista é tema para alguns dos trabalhos da época assinados por Arlindo Vicente. Retratos de José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Francisco Bugalho ou Adolfo Casais Monteiro fazem parte do repertório. O Modernismo é a tendência em voga. Arlindo Vicente explora essa tendência.

Lisboa e os Independentes

Ainda antes de terminar Direito, o que viria a acontecer em 1932, Arlindo Vicente faz parte de um lote de artistas plásticos chamados de Independentes. Os Independentes, animados pela figura multifacetada de António Pedro, expõem, em 1930, 312 obras na Casa Quintão, na Rua Ivens, em Lisboa. Pintura, desenho, escultura, fotografia misturam-se numa mesma mostra, reflexo da rejeição às formas estanques que os cânones académicos procuravam impor.

No ano seguinte a iniciativa reaparece, mas a situação política e social do país agrava-se, o fascismo estende-se a toda a latitude do poder do Estado e só em 1936 a experiência voltaria a repetir-se, embora com um cunho diferente. Ao mesmo tempo que decorria o 2º Salão de Arte Moderna promovido pelo regime, com António Ferro à cabeça, os Artistas Modernos Independentes fizeram questão de se distanciarem do fascismo e voltaram à Casa Quintão. Meia centena de trabalhos são expostos. Arlindo Vicente está presente.

Definitivamente em Lisboa, coloca de lado as leis e fura no meio artístico. O sonho longínquo afinal parecia perto. È tertuliante habitual do Café Chiado onde se junta a João Villaret, António Pedro, etc. Visita França e Espanha, países nos quais vende parte dos seus trabalhos mas onde também «perde os olhos» a contemplar as obras de Goya, Cézane, Gaugin ou Renoir.

Proscrito pelo fascismo

A 2ª Guerra Mundial e a insistência em dar cor aos flagelos sociais do Portugal dos anos 30 valem-lhe a antipatia do fascismo e colocam-lhe obstáculos no prosseguimento de uma carreira artística. Não cede aos favores da ditadura, recusa as iniciativas do regime e dedica-se quase por inteiro à advocacia como forma de sustentar uma família onde já crescem filhos pequenos, mas nunca abandona as tertúlias intelectuais. No Café Veneza priva com Ferreira de Castro, escritor com quem desenvolve uma profunda amizade e identificação.

O pós-guerra não seria frutuoso do ponto de vista artístico para Arlindo Vicente. As esporádicas aparições do pintor dão-se por oito vezes, entre 1946 e 1956 na Exposição Geral de Artes Plásticas da Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA), instituição à qual o seu nome está indelevelmente ligado.
O seu gosto pela arte e pelo livre pensamento levam-no a fazer parte dos órgãos sociais e de diversos corpos de júri da SNBA. Os mesmos motivos levam Arlindo Vicente a enfrentar o regime, entre as décadas de 40 e de 60, em diversos processos como advogado de artistas e exposições encerradas pelo fascismo a golpes de rusgas policiais. È o «lápis azul» e o sentido de justiça de um antifascista em rota de colisão.

Sete anos com toda a alma

Quando em 1970 abandona o escritório onde enterrou o sonho de artista durante trinta anos, Arlindo Vicente ganha novo fôlego e uma exposição individual na SNBA. Do catálogo fazem parte 106 trabalhos, a maioria dos quais óleos dedicados ao povo nas mais diversas expressões. O trabalho, o lazer, a família numa visão desempoeirada.

Quatro anos depois, em Novembro, já conquistada a liberdade para a qual deu inestimável contributo, Arlindo Vicente volta a mostrar mais de 70 quadros na SNBA. O povo volta ao centro da tela e a luta dos camponeses inspira o artista.

A 24 de Novembro de 1974 morre em Lisboa, com 71 anos, mas deixa um exemplo de tenacidade, quanto mais não seja, porque obrigou o pintor a sair de dentro do «doutor».

Publicado no Avante! de 23 Novembro 2006